Pat, engenheira de 34 anos, separada, chegou ao meu consultório e foi
logo dizendo: “Não aguento mais ter que arranjar dinheiro para pagar as
contas e resolver tudo na minha vida. Estou buscando um marido que me
proteja, cuide de mim e me sustente. Minha filha, no seu aniversário de
seis anos, pediu uma festa com o tema de Cinderela. Ela até se vestiu
dessa forma. Assim é bom, porque ela já vai se acostumando com a ideia
de que é importante procurar um homem bem diferente do pai dela, que não
tem dinheiro. Quando ficar maior, mesmo que tenha uma profissão, espero
que se case com alguém que a proteja e garanta seu sustento.”
Não tenho dúvidas de que os contos de fadas são prejudiciais às
crianças. Mas será que pais e professores se dão conta disso? Será que
percebem quais tipos de ideias estão passando para as crianças,
subliminarmente, por meio desses contos? Cinderela, Branca de Neve, Bela
Adormecida.
Modelos de heroínas românticas, que, ao contrário do
que se poderia imaginar, no que diz respeito ao amor, ainda são
parecidas com muitas mulheres de hoje. Mas isso não é à toa.
Desde a Antiguidade as mulheres detinham um saber próprio,
transmitido de geração em geração: faziam partos, cultivavam ervas
medicinais, curavam doentes. Na Idade Média seus conhecimentos se
aprofundaram e elas se tornaram uma ameaça. Não só ao poder médico que
surgia, como também do ponto de vista político, por participar das
revoltas camponesas.
Com a “caça às bruxas”, no século XVI, 85% dos acusados de feitiçaria eram mulheres. Milhares delas foram executadas, na maior parte das vezes queimadas vivas.
Segundo os manuais usados pelos inquisidores, é pela sexualidade que o
demônio se apropria do corpo e da alma dos homens, dominando-os através
do controle e da manipulação dos atos sexuais. Não foi assim
que Adão pecou? Como as mulheres estão essencialmente ligadas à
sexualidade, elas se tornam agentes do demônio (as feiticeiras). Rose
Marie Muraro na introdução do livro “O martelo das feiticeiras”, escrito
por dois inquisidores em 1484, chama a atenção para um detalhe
importante: “eram consideradas feiticeiras as mulheres orgásticas e
ambiciosas, as que ainda não tinham a sexualidade normatizada e
procuravam se impor no domínio público exclusivo aos homens.”
Final para Branca de Neve foi feliz, ao lado do príncipe em um castelo.
A partir daí podemos entender melhor como as mulheres e as
personagens femininas das histórias infantis foram se tornando passivas,
submissas, dóceis e assexuadas.
Em “Cinderela”, “Branca de
Neve” e “A Bela Adormecida” existem algumas mulheres que até fazem
mágicas, mas a mensagem central não é a do poder feminino, e sim da
impotência da mulher. O homem, ao contrário, é poderoso. Não só
dirige todo o reino, como também tem o poder mágico de despertar a
heroína do sono profundo com um simples beijo. Além da incompetência de
lutar por si própria, comum às principais heroínas, Cinderela é
enaltecida por ser explorada dia e noite, trabalhando sem reclamar e sem
se rebelar contra as injustiças. Padece e chora em silêncio. Seu
comportamento sofrido, parte do treinamento para se tornar a esposa
submissa ideal, é recompensado: seu pé cabe direitinho no sapato e ela
se casa com o príncipe.
No entanto,
o mais grave nos contos de fadas é a ideia de que
as mulheres só podem ser salvas da miséria ou melhorar de vida por meio
da relação com um homem. As meninas vão aprendendo, então, a ter
fantasias de salvamento, em vez de desenvolver suas próprias capacidades
e talentos. As heroínas das histórias estão sempre ansiosas em
fazer o máximo para agradar ao homem, ser como ele deseja, e acreditam
que adequar seu corpo à expectativa dele é fundamental. Não se esqueça
de que Cinderela e todas as moças do reino tentam se ajustar ao
sapatinho encontrado pelo príncipe — a madrasta orienta as filhas a
cortar um pedaço do pé para corresponder ao que o homem espera delas.
A historiadora americana Riane Eisler afirma que
“essas
histórias incutem nas mentes das meninas um roteiro feminino no qual
lhes ensinam a ver seus corpos como bens de comércio para conseguirem
pegar não um sujeito comum, mas um príncipe, status e riqueza. Em
última análise a mensagem dos ‘inocentes’ contos de fadas, como
Cinderela, é que não somente as prostitutas, mas todas as mulheres devem
negociar seu corpo com homens de muitos recursos.”
Em vez de desenvolver suas próprias potencialidades e buscar relações
onde haja uma troca afetiva e sexual, em nível de igualdade com o
parceiro, muitas mulheres se limitam a continuar fazendo tudo para
encontrar o príncipe encantado.
AUTOR: Regina Navarro Lins (no twitter @
reginanavarro)
é psicanalista, escritora e autora de dez livros. Ex-professora de
psicologia do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, foi a
criadora da cadeira de Dinâmica de grupo. Durante dois anos e meio
apresentou um programa diário sobre sexo na Rádio Cidade. Foi, por oito
anos, colunista do Jornal do Brasil, no Jornal da Tarde e atualmente
assina uma coluna no jornal O Dia. Realizou mais de duzentas palestras e
workshops sobre amor, casamento e sexo em várias cidades do país.
Trabalha em seu consultório particular em terapia individual e de
casais.
*Na tag “entre aspas” divulgamos textos de
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